Livro de crónicas escritas entre Março de 2017 e Março de 2019 pela pena de Vítor Encarnação e publicadas no jornal Diário do Alentejo.
Moiral
Gostava de ser moiral dos meus pensamentos. Os meus pensamentos são um rebanho de coisas que se pensam ao mesmo tempo, ideias tresmalhadas, convicções perdidas, é já sol-posto, é já noite cerrada e não os acho, não voltam a mim para poderem descansar. Descanso é o que eles precisam, não lhes basta o dia, não lhes basta o dia inquieto, e à noite ainda ficam piores e não me deixam dormir. Soltam-se do meu raciocínio, fogem da minha cabeça, saltam os limites, escapam das malhas da rede, andam por aí a monte, vadios, uns mais negros do que outros, uns mais loucos do que outros, à procura de sonhos, à procura de palavras que não existem, à procura de matarem a fome. Gostava de ter um cajado e de saber assobiar para os juntar. Gostava que eles me obedecessem, nem era preciso dizer nada, eles pressentiam a minha certeza e vinham ter comigo. Gostava que os meus pensamentos fossem animais domésticos, bichos obedientes, palavras que dessem lã, ou leite, ou carne, palavras que prestassem para alguma coisa. Gostava de os saber pastorear, levá-los e trazê-los todos juntos, como se fossem o mesmo, cada um seguindo o trilho do outro, e fazer com que cada um comesse só as palavras que existem e pastasse na quietude do cérebro. Já tentei cães, mas os cães de nada me servem, os cães ficam iguais ao dono, adivinham-lhe o pensamento e já nada se faz deles.